Apesar de se autodenominar futurologista digital, Elouise Epstein tem um olhar afiado para o presente. Transitando entre o passado e o futuro, a doutora e consultora desenvolveu, ao longo dos anos, a habilidade de prever tendências, especialmente na área de design digital para eProcurement.
O que alguns chamariam de dom, na verdade, é fruto de muitos “nãos” combinados com uma curiosidade profunda, sobretudo em relação à história – área na qual possui um Ph.D. pela Bowling Green State University.
“Amo estudar sobre como chegamos a este ponto na história, porque entender isso me permite pensar para onde vamos caminhar. Muitas vezes, o momento presente é horrível e é preciso olhar adiante”, declarou ela em entrevista ao IT Forum durante sua última visita ao Brasil.
A afirmação vem de diversas experiências ao longo de sua trajetória e de um exame minucioso do cenário atual, principalmente no que diz respeito às pautas de diversidade. Além de consultora, pesquisadora e sócia da Kearney, enquanto mulher trans, Elouise também atua como palestrante sobre os direitos LGBTQIAPN+. Assim como ocorre com outras pessoas trans, embora não defina sua história, sua identidade de gênero atravessa sua carreira e trouxe marcos importantes para a forma como se posiciona.
“Sempre digo que, antes de transicionar, eu era bem preguiçosa no trabalho. De verdade, fazia o mínimo e, mesmo assim, avançava na carreira. Então, quando falamos em privilégio, eu sou a prova viva de que ele existe. Mas sair do armário me fez me preparar melhor. Me transformou em uma pessoa melhor em todos os sentidos.”
Nascida e criada em San Diego, na Califórnia, a pesquisadora só foi compreender que se identificava como mulher na vida adulta, durante uma aula sobre gêneros na faculdade. “Cresci em uma comunidade extremamente conservadora e em meio à crise da AIDS. Então, eu nem fazia ideia de que essa era uma possibilidade.”
Além da cultura homofóbica ao seu redor, Elouise conta que, apesar de se sentir diferente, sua natureza voltada sempre para os próximos passos a impediu de refletir muito sobre o assunto enquanto crescia. Atraída pelas artes, ao contrário de muitos de seus colegas, seu início não foi na tecnologia. Com um diploma em Teatro, a executiva começou sua trajetória como gerente de produção em uma companhia de artes.
Para uma jovem que sonhava em conhecer mais sobre o mundo, um trabalho que incluía viagens por todos os cantos dos Estados Unidos parecia ideal – exceto pelo excesso de responsabilidade e a escassez de recursos. “Eu adorava, mas, quando me casei, senti que precisava de um ‘emprego de verdade’ e foi aí que encontrei a tecnologia”, relembra.
O momento não poderia ter sido mais oportuno, já que, à época, Epstein e a esposa moravam em São Francisco, na Califórnia. Era 1995, e a internet começava a ganhar destaque e transformar a forma como nos relacionamos.
“Era frenético! Abríamos os jornais todos os dias com notícias sobre empresas como Amazon e eBay. Todos estavam deixando seus empregos para trabalhar com tecnologia. Era impossível não se deixar levar por esse movimento.”
Diante do cenário, a escolha foi simples: Elouise deixou a companhia, mas manteve sua ligação com as artes ao assumir a administração do site da Ópera de São Francisco. A experiência foi seu primeiro contato não apenas com tecnologia, mas também com sistemas de eProcurement, já que a organização foi uma das pioneiras mundiais na venda de ingressos online e em clubes de assinatura.
Após adquirir alguma bagagem, decidiu ingressar em uma startup que desenvolvia uma ferramenta de busca para o setor B2B, baseada em “leilões reversos”. A empresa rapidamente foi à falência. No entanto, o que poderia ter sido um desastre se transformou em uma grande oportunidade.
A startup na qual Elouise trabalhava pertencia a uma holding que também era dona da Kearney. Quando a empresa não prosperou, todos os funcionários foram transferidos para a consultoria, onde Epstein construiu os 23 anos seguintes de sua carreira.
“No começo foi difícil. Eu era uma pessoa digital em uma empresa de papel e fax e, para ser sincera, por 10 anos tive a oportunidade de trazer o digital para a Kearney. Só faltava eles quererem”, brinca.
Um novo capítulo
Enquanto conta sua trajetória, Elouise brinca que, por muito tempo, seu trabalho na Kearney consistia em bater de porta em porta tentando convencer as pessoas de que o digital valia a pena. Ao longo de sua carreira, sua capacidade de prever tendências demorou a ser reconhecida.
Dentro da organização da qual hoje é sócia, a futurologista chegou com o objetivo de digitalizar os processos internos, integrando ferramentas de intranet. O plano demorou a conquistar a adesão de outros executivos e, quando finalmente entrou em ação, Elouise já havia identificado uma nova tendência promissora: o big data.
Era 2010, e a executiva havia iniciado sua pós-graduação em big data e data science. O tema a fascinou imediatamente, mas, mais uma vez, não foi bem recebido pelos parceiros da Kearney.
“Quando chegamos a 2016, eu estava no fundo do poço da minha carreira na Kearney. Já procurava por outras oportunidades e quase fui demitida. Minha sorte foi que ocorreram muitas dispensas naquele período, então acabei me escondendo, por assim dizer, para passar despercebida e manter o emprego.”
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Nessa mesma época, em sua vida pessoal, Elouise já havia feito sua transição de gênero, mas o receio de perder o trabalho a fez esconder quem realmente era no ambiente corporativo.
Foi apenas no final de 2017 que as coisas começaram a mudar. Atenta aos movimentos dos clientes, Epstein percebeu um padrão nas reclamações: diversas empresas procuravam a Kearney em busca de soluções para o uso de plataformas de eProcurement. A principal queixa era que, apesar dos altos investimentos nas ferramentas, os usuários não conseguiam utilizá-las adequadamente.
“Percebi que poderíamos explorar essa lacuna, porque o que essas empresas estavam vendendo era tecnologia obsoleta, com arquiteturas ultrapassadas. Minha ideia era transformar o eProcurement em uma arquitetura extensível, mas com um hub de IA no centro, conectando os aplicativos.”
Desta vez, entre o desenvolvimento da proposta e sua aprovação na Kearney, o destino colaborou. Em 2020, com a chegada da pandemia, todas as empresas precisaram se digitalizar da noite para o dia. A urgência despertou a atenção dos sócios para a solução de Elouise e marcou um novo começo em sua trajetória.
Essa nova fase já começou com seu nome e identidade reais. Em 2019, ao perceber um ambiente mais acolhedor entre os colegas, Elouise tomou coragem e anunciou sua transição para a empresa. A resposta foi surpreendentemente positiva.
“O que a Kearney fez é um modelo a ser seguido, ainda mais considerando que eu já era uma profissional sênior. Eles contrataram um consultor especializado em treinamento de equipes para diversidade. Atualizamos os sistemas, comunicamos os clientes e, enfim, sou muito grata à empresa, porque eles realmente se destacaram.”
Olhando para o futuro
Mesmo depois de se tornar uma referência dentro da consultoria, Elouise não deixou de mirar o futuro. De acordo com a futurologista, o próximo passo para os sistemas de eProcurement são os agentes de IA, capazes de automatizar pedidos e tarefas dentro das plataformas.
A motivação para desenvolver a próxima etapa dessa tecnologia surge de uma frustração pessoal. “Jurei que nunca mais iria logar em um sistema SAP, porque a interface é extremamente frustrante. E, da forma como vejo, quando criarmos um programa agêntico, esse agente poderá fazer isso por mim e pelos meus clientes.”
A fala da pesquisadora não reflete apenas sua própria vivência, mas também as necessidades das novas gerações. Segundo Elouise, nos próximos anos, com a presença crescente da geração Z no mercado de trabalho e a chegada dos Alpha, o funcionamento atual dessas plataformas deixará de ser viável.
“Qualquer sistema de transações carrega um grande legado tecnológico, e meu argumento é que eles permanecerão, ao menos pelos próximos 10 anos. Mas acredito que podemos investir na criação de agentes que acessem esses sistemas e extraiam os dados para nós, em vez de gastarmos com uma nova interface.”
É também por meio desses agentes que Elouise enxerga uma solução para as cadeias de suprimentos diante da atual guerra comercial entre Estados Unidos e China. A executiva defende que, diante de um cenário tão instável, a tecnologia poderia buscar as principais notícias e movimentações de cada mercado (SAS, semicondutores, etc.), sintetizando contextos para os consultores.
Esse apoio permitiria a criação de novas estratégias e influenciaria as decisões das empresas no que diz respeito às compras necessárias para a produção. A futurologista acredita ainda que o cenário político atual levará o mundo a um modelo de produção mais regionalizado, em detrimento da globalização. “A globalização depende de uma estabilidade global, e nós não conseguimos mais garantir isso. Com alguns avanços, como a impressão 3D, já não precisamos importar ou exportar tantos produtos.”
Em relação às pautas LGBTQIAPN+, Elouise observa com preocupação os próximos anos. Apesar de alguns avanços, a executiva percebe uma carência de resultados concretos nas políticas de diversidade e o movimento atual das big techs de reduzir os investimentos nessa área. “Não estou preocupada com o hoje, mas, quando olho para o futuro, quero poder imaginar um que seja atingível para todos nós”, finaliza.
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